terça-feira, 24 de março de 2009

Deu Branco!

“Caminhar na busca de recuperar o esquecido, de enxergar novamente o simples que, em nossa época, através do embotamento provocado pelo universo tecnológico, se tornou uma das tarefas mais difíceis”. (HEIDEGGER, 1981).

Tudo e nada! As duas faces de uma mesma moeda. Às vezes parece que se tem tudo, até que tudo se transforma em nada. A vida, a casa, o emprego, a família, os que vivem no entorno...No campo das artes o branco é a soma de todas as cores... De novo tudo e nada!
Sobram estímulos, falta significado e expressão, como se o dia a dia passasse em branco. Então um sentido falha...E a vida recomeça onde tudo parece que termina. O filme Ensaio sobre a Cegueira faz emergir em nós um universo de sensações, que ficarão submersas se não pudermos explorar e transformar em reflexões. Quero comentar apenas três impressões que me remete à tão conhecida psicopatologia da vida cotidiana: a impessoalidade, a ignorância e o individualismo, todos esses, aliás, sintomas de uma mesma doença, sobejamente atualizada em nós: a cegueira da alma.
Nova York, Tóquio, São Paulo, tanto faz quando há uma mancha urbana cobrindo o grande vazio do cosmos. A vida passa brevemente e nós não paramos por nada, o fast food impera. Outro dia em meio a um grande temporal, uma cidadã paulistana liga num renomado restaurante e faz uma reserva. Tempos depois o mesmo restaurante retorna a ligação para o seu trabalho e pergunta se é possível antecipar a sua chegada uma hora antes e também se uma hora seria suficiente para degustação do prato. É claro que a sua resposta foi tão indelicada quanto a pergunta: “se eu quisesse comer correndo eu teria procurado um fast food”.
Vivemos tão ensimesmados que não enxergamos um palmo além, não sentimos o gosto, o cheiro, a textura, mal sabemos que dia é hoje, se fez chuva ou se caiu o maior sol...Daí eclode uma pergunta que não quer calar: qual é a emergência, para onde vamos com tanta pressa, o que tem lá que está faltando aqui? Falta você, há excessos do eu, faltamos nós, o diálogo entre o aqui e o ali, faltam conexões, trocas, nomes, cores, faltam espaços de convivência, sobram conveniências! É desse mal-estar que se foge e seguimos sem ninguém, quem sabe para encontrar com alguém... Acolá!
O filme capta olhares distantes, presenças ausentes, o tédio da dona de casa tomando uma taça de vinho, sozinha, enquanto termina a louça do jantar que sequer foi identificado e saboreado. O consultório cheio de personagens que estão indiferentes a presença do outro, aguardando tão e somente a sua vez, pois é isso e só isso o que importa: a minha vez, o meu bem-estar. Convém ressaltar que sintomas como esses, assim como o da indiferença, apatia, falta, competição, se constituem em maneirismos deficientes de se relacionar no mundo.
É evidente que nesse estado último de ignorância e desprezo humano, a perda de uma sensibilidade passe a gerar outros rumos rimas e sentidos. Primeiro a presença passa a ser estritamente funcional, depois como a única maneira de ser e existir no mundo, dependendo profundamente um do outro, estabelecendo relações, envolvimento e compromisso com uma vida de mais sensibilidade solidária. Essa é uma competência humana que carecemos desenvolver.
No livro, Todos nós ninguém...um enfoque fenomenológico do social, de Heidegger, temos a dica de viver dia a dia no plano da solicitude, não esperando que algo ou alguém falte para que então a vida passe a fazer sentido. No entanto, não podemos também esperar que a vida do próximo deixe de fazer sentido para que a nossa entre em cena e venhamos a ocupar os espaços vazios. Não faz sentido!!
Há muitos espaços em branco....Podemos ocupar os lugares junto com o outro, desatar o nó, fazer desabrochar o eu-tu-nós! Preencher o dia de hoje com experiências significantes...Buscar olhar para além do que o olhar capta...Perceber que a vida é significativa e cheia de pessoas significantes, esse é o mistério que almejamos desvelar. Pedir licença para conhecer e acolher a história de todos nós, afinal a nossa vida transcorre sempre entrelaçada com a vida de mais alguém.
Ser com os outros no mundo, é a característica fundamental e genuína, mais específica do ser humano, pois nos aproxima da humanidade e de nós mesmos com o que somos e sempre seremos. Podemos até esquecer, mas isso não muda a realidade de que você e eu somos essencialmente...gente.

Ângela Soares

2 comentários:

Anônimo disse...

muito bom o texto!

Mariana Wood disse...

Realmente, e tempo de repensar as nossas prioridades...passamos a maioria do tempo preocupados com contas, trabalhos, projetos e esquecemos que pessoas sao o maior investimento das nossas vidas. Lindo texto...Sua inspiracao me inspira. Beijos